Depois de toda a poesia cantada por Amália, desde o início da década de 50, e de todos os fados que Alain Oulman lhe escreveu a partir de 1959, seria esperável que o repertório da cantora seguisse um caminho mais erudito. Mas a sua enorme liberdade artística – e a total ausência de pretensiosismo – fintou por completo esse destino.
Mantendo sempre intensa a ligação a Oulman e à grande poesia, Amália trilhou ao mesmo tempo outros e até inesperados caminhos: entre 1963 e 1969 gravou cinco EPs com marchas populares de Lisboa; em 1965 editou o seu primeiro LP de folclore, Amália Canta Portugal; nesse mesmo ano iniciou a gravação de um disco com grandes êxitos do cancioneiro norte-americano e, em 1967, atingiu o auge do seu legado no fado tradicional, em "Fados 67".
Em 1968, com o êxito extraordinário de “Vou Dar de Beber à Dor”, de Alberto Janes, eclodem no seu repertório algumas cantigas, por alguns ditas “folcloristas” ou de natureza “brejeira”, mas que na voz de Amália, sempre segura da sua matriz popular e do seu erudito fraseado musical, nunca caem na vulgaridade. Pelo contrário, transformam-se em brilhantes veículos para chegar a mais alargados públicos e trazer também novos ambientes aos seus admiradores de sempre.
Os mais fadistas, pelo fascínio que sentem por ela, visitam géneros musicais que à partida nem considerariam. E o mesmo acontece no sentido inverso. Amália fascina novas plateias, que chegam ao fado através da sua voz nestas cantigas mais ligeiras. Por ser assim, o repertório de Amália foi um caso singular de amplitude artística, pela forma natural como conciliou públicos, classes e nichos musicais tão estanques. Foram precisamente essas cantigas que preencheram a maior parte dos singles e EPs publicados por Amália entre 1969 e 1977, bem como as respectivas sessões de gravação, entre 1968 e 1975.
Ofuscadas pelo repertório dos LPs desta época – Com que Voz (1970) e Cantigas numa Língua Antiga (1977), ambos com música de Alain Oulman; Cantigas de Amigos (1971), com Natália Correia e Ary dos Santos, dedicado à poesia medieval portuguesa; Canta Portugal III (1972), o seu terceiro LP de folclore; A una Terra che Amo (1973), com cantigas populares italianas; e os álbuns ao vivo no Japão, no Café Luso e no Canecão –, algumas destas cantigas foram reunidas num outro LP, de 1971, a que se chamou "Oiça Lá ó Senhor Vinho". Foi ele o único e exíguo testemunho desses 45 rpm originais a continuar até hoje em catálogo.
Nesta edição, todas essas faixas, pela primeira vez disponíveis a partir das bobines originais, se juntam ao extenso e não menos brilhante material inédito dessas sessões, com muitas versões alternativas, ensaios de estúdio e cantigas totalmente novas na voz de Amália – tudo miraculosamente preservado pela vontade de Rui Valentim de Carvalho.
Em jeito de prelúdio, um EP nunca publicado, de 1968, todo ele com versões inéditas de cantigas de Alberto Janes, iniciado com o Conjunto de Guitarras de Raul Nery mas completado já sem o guitarrista. Que melhor sequência, e não apenas cronológica, para "Fados 67".
Cinquenta anos passados sobre essas primeiras versões, todas estas serendipidades (eu, ao contrário da Amália, preciso de palavras pretensiosas) originam um muito inesperado e grande disco dela, “digam lá se é assim ou não é”!
Frederico Santiago